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Minha amiga, Maria José Falcão, é professora
“de nada”. Ela trabalha em uma escola no interior de São Paulo. Professora “de nada” não tem sala adequada, o material é escasso,
mas é o nada que faz produzir coisas incríveis. Maria José em toda sua simplicidade “de nada” encanta na sua fala mansa quando conta histórias de seus alunos.
Em Monte Alegre do Sul (SP), o grupo de pesquisa em mediação
cultural: Contaminações e Provocações Estéticas, do qual eu fazia parte,
foi passar o final de semana que chamamos de Seminário de Verão.
Estávamos todas trabalhando em nossos textos, discutindo teóricos de
arte, apresentando pontos de vista quando, no meio do burburinho, chega
Maria José tranquila, devagar, fala mansa, carregando seu material.
Continuamos a falar, discutir sem dar muita atenção. Estávamos
divididas em duplas de trabalho e como chegou atrasada ficou sem par.
Sentou-se tranquilamente na varanda aguardando a discussão se encerrar,
seu texto já estava pronto, então sobrara o nada para ela.
Quando acabei meu trabalho de dupla, sentei ao seu lado. Olhei,
distraidamente, por cima da mesa e vi uma frasqueira de couro vermelha
dos anos 60. Meu olhar se deteve naquele objeto que me fez voltar no
tempo, aqueceu meu coração, aguçou minha curiosidade. O que tem aí?
Pergunto. No seu jeito simples de ser, cuidadoso e quase tímido, ela diz
que são trabalhos dos alunos que trouxera para mostrar. Quer ver? Abre
com cuidado e um universo surge: pequenos potes de vidro de tamanhos e
formatos diferentes apresentam segredos poéticos descobertos durante as
aulas “de nada”.
Muitas vezes as pessoas perguntam sobre o quê ela dá aula ao que responde sem o menor constrangimento
“sou professora de nada”,
é o grande nada da arte, a potência de ser, o invisível que torna
visível, o não falado que torna expressão, o silêncio que torna pulsar.
Maria José explica que arte não tem um espaço na escola e sabemos que
para muitas pessoas não tem lugar na vida, porque não serve para nada.
Quantas vezes não escutamos de algumas pessoas que não gostariam que
seus filhos se embrenhassem pelos caminhos da arte por não fazer parte
do mundo real? No entanto são as coisas inúteis da arte que nos fazem
explorar, que nos fazem questionar e que nos impulsionam a empreender.
Nem todos nós seremos artistas, mas todos precisamos estar abertos para o
mundo, precisamos ter coragem de bater as asas, de olhar um problema
sobre uma nova perspectiva, e isso a arte nos dá. A arte provoca a
curiosidade, desperta a inteligência, ensina a ver e ter ousadia no
pensar.
Voltemos para os pequenos vidros que estavam dentro da frasqueira de
Maria José. Inspirados pela música de John Cage de 4’33” de puro
silêncio que são espaços de silêncios povoados de outros sons, cada
aluno colocou o som que havia escutado dentro do vidro. Podia ser um som
real ou o som da imaginação. Foram coletados os sons do bater das asas
de uma borboleta, da água da goteira que cai na carteira, do pó do giz
da lousa, da bolinha de papel, do pedaço de anel quebrado. Em cada vidro
foi guardado o espaço da arte na escola.
Naquele momento de suspensão, nós, mulheres, pesquisadoras,
arte-educadoras, ficamos em volta da mesa, na varanda, com o pôr de sol
ao fundo, escutando Maria José e nos deleitando com as coisas “inúteis”
que a arte nos proporciona.
Ana Carmen Nogueira é Mestre em Educação, Arte e
História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Graduação em Artes
Plásticas. Especialista em Educação Especial com aprofundamento na área
de deficiência visual e Arteterapia. Coordenadora do grupo de mulheres
caiçaras “Saíras do Bonete” em Ubatuba, São Paulo. Desenvolve pesquisa
de pintura encáustica, ministra cursos desta técnica e atua como
Arteterapeuta no Ana Carmen Nogueira Ateliê de Artes.